Por que a “máquina de harmonização” da União Europeia deve ficar afastada da história

Claus Leggewie e Horst Meier explicam por que leis sobre memória são métodos equivocados para os europeus lembrarem e debaterem as dificuldades do passado.

É notório que a União Europeia é uma grande máquina de harmonização. A decisão do Conselho Europeu de novembro em 2009, por exemplo, tenta combater por meios de leis penais certas formas e expressões de racismo e xenofobia, ou, nos termos da lei, “apologia pública, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio”. A UE, contudo, resistiu recentemente à criação de uma política de história comum tendo como base essa decisão do Conselho. Em relatório enviado ao Conselho e ao Parlamento Europeu em dezembro de 2010, a Comissão lista uma gama de diferentes regimes de leis sobre memória dos Estados-membros sem mencionar a necessidade de um padrão comum entre eles.

Em abril de 2009, no entanto, o Parlamento Europeu reiterou que “a Europa não estará unida até que seja capaz de ter uma visão comum de sua história, reconhecendo regimes como o nazismo, o stalisnismo, o fascismo e o comunismo como legados comuns e debatendo de forma aprofundada e honesta os crimes do século passado.” Tal declaração nunca seria proferida antes da adesão dos novos membros do Leste Europeu à União Europeia. Num passado não muito distante, durante o Forum Internacional de Estocolmo sobre o Holocausto, realizado há doze anos, políticos europeus focalizaram o genocídio contra os judeus da Europa. O genocídio figura como o pior crime da história da humanidade, e foi debatido como sendo elemento central da memória coletiva europeia e a principal motivação da luta contra o racismo e a discriminação hoje em dia. Muitos países europeus escolheram o dia 27 de janeiro, data de libertação dos campos de concentração de Auschwitz, como dia oficial de lembrança. “Auschwitz” se tornou uma espécie de mito fundador negativo da Europa pós-fascismo e muitos países criminalizaram a negação do Holocausto.

Embora a criminalização da negação do Holocausto seja compreensível, dado o desejo de proteger as vítimas e honrar os mortos, essas leis são problemáticas. Apesar de repetidamente reiterado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, os crimes definidos pela “lei de sedição” da constituição alemã representam uma significativa limitação à liberdade de expressão. O ex-juizes da suprema corte alemã Hoffmann-Riem e Hassemer preferem acabar com a criminalização da negação do holocausto. Tal liberalização da lei criminal na Alemanha está atrasada. Impor uma visão oficial da história, isto é, a fusão do monopólio estatal da violência com o monopólio da história, é uma marca registrada dos estados totalitários. Além disso, outros países europeus importantes, como a França (em 1990), seguiram a norma alemã (Timothy Garton Ash) e também criminalizaram a negação do holocausto.

Não foi uma surpresa que países do centro e leste da Europa, que foram liberados depois de quarenta ou cinquenta anos de ocupação soviética em 1990, optaram pela criação de suas próprias leis anti-negação dos crimes comunistas, algo que eles achavam mais urgente que apoiar o mito fundador negativo do ocidente europeu. Sandra Kalniete, uma política da Letônia, explicou em 2004 que ambos os sitemas eram “igualmente crimonosos”. Essa visão é compartilhada pela maioria dos Estados bálticos, pela Polônia e até mesmo pelo sudeste europeu. De acordo com a lei tcheca, “a negação pública, questionamento, justificação ou apologia do genocídio cometido por nazistas ou genocídios cometidos por comunistas” são puníveis com prisão de seis meses a três anos”. Nesse sentido, se a negação do Holocausto for criminalizada em toda a Europa, haverá pedidos inevitáveis por tratamento igual aos crimes cometidos por Stalin e seus companheiros.

Em 2007, o Conselho Europeu pediu a Comissão para que examinasse “a necessidade de instrumento adicional para coibir atos de apologia pública, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra contra grupos de pessoas que tenham status social ou crenças políticas definidas, além das referências a raça, cor, religião, ascendência, origem nacional ou étnica.” Embora historiadores e diretores de museus da Europa ocidental estejam relutantes em se envolver em tal debate, acadêmicos anglo-americanos como Timothy Snyder, de Yale, (Bloodlands: Europe between Stalin and Hitler, 2010) e Norman Naimark, de Stanford (Stalin’s Genocides, 2010) vem assinalando a necessidade de “outros critérios e instumentos adicionais”. Eles argumentam que a definição de genocídio feita pela ONU em 1948 está incompleta, pois a definição não inclui “processos judiciais em massa por motivos de status social e filiação política” (que, hoje, é muitas vezes chamado de sociocídio). Essa cláusula foi removida após pressão da União Soviética em 1948. Um exemplo das consequências disso é a proclamação oficial do governo do presidente da Ucrânia Yushchenko em 2007 de que o chamado Holodomor — a fome causada pelo regime de Stalin em 1932 e 33 — foi um genocídio contra a nação ucraniana.

O dia 23 de agosto, então, passa a ser uma plausível candidata para data de celebração pan-Europeia. Foi nesse dia que em 1939 o Terceiro Reich e a União Sociética assinaram o pacto “Hitler-Stalin” com o protocolo secreto, inaugurando de fato uma divisão de trabalho entre a Alemanha nazista e a Rússia soviética em territórios da Europa oriental. O dia 23 de agosto coloca em questão o atual dia de celebração — 9 de maio (de 1945) — na Europa oriental, pois marca o dia em que a região foi libertada do terror nazista e foi ocupada pelos soviéticos. No entanto, tal revisão provoca revoltas na Rússia, onde o 9 de maio continua sendo celebrado como o dia da vitória. Em maio de 2009, o presidente russo Dmitry Medvedev criou uma comissão para “bloquear tentativas de falsificar a história em detrimento dos interesses da Rússia”. Com isso, ele quer proteger uma historiografia acrítica da “Grande Guerra Patriótica”, que cada vez mais implica em ser abertamente apologético ao stalinismo.

A criminalização da negação do holocausto inspirou tentativas análogas de proibir a negação de genocídios, especialmente o genocídio armênio de 1915-17. Vários parlamentos aprovaram legislações criminalizando a negação desse genocídio, e isso já levou a casos judiciais em França e Suíça. A União Europeia pede informalmente que a Turquia reconheça o genocídio e abandone sua posição oficial que interpreta os eventos de 1915-17 como massacres de guerra. Tal pedido informal é um dos requisitos para dar prosseguimento a admissão da Turquia na União. A resposta da Turquia à pressão europeia foi decepcionante; o artigo 301 do Código Penal Turco, que criminaliza o ato de “insultar a nacionalidade turca” (que abarca qualquer discurso sobre o genocídio armênio), não foi substancialmente reformado.

Historiadores pós-coloniais comparam de forma similar os crimes coloniais cometidos pelas potências europeias contra os Shoah (Holocausto). Eles entendem que um grande número de vítimas e o alto grau de planejamento sistemático e organização são paralelos óbvios entre os dois casos. Em maio de 2001, o congresso francês aprovou uma lei proposta pela parlamentar Christine Taubira, nascida na Guyana, que classifica escravidão como crime contra a humanidade. Isso levou o historiador Olivier Pétré-Grenouilleau a ser processado, pois ele se recusava a interpretar a escravidão como simples genocídio em seu livro de crítica sobre o comércio de escravos. E como toda ação tem uma reação, em 2005 uma iniciativa parlamentar na França destacou os “aspectos positivos do colonialismo”. Historiadores rejeitaram isso e o que sobrou dessa tentativa de criar uma visão higiênica da história foi uma lei contra insultos e abusos contra qualquer pessoa que lutou pela França nas colônias.

Mais de 1000 acadêmicos franceses (entre outros) participaram de um vigoroso protesto, sob o mote “Liberdade para a história”, contra todas as leis sobre memória, não obstante se a lei busca proscrever ou prescrever uma visão particular da história. Eles estão lutando por liberdade de expressão e pesquisa acadêmica, como o relatório da Comissão Europeia, mencionado acima, quando afirma que “interpretações políticas oficiais de fatos históricos não devem ser impostos por meio de decisões majoritárias nos parlamentos”, e que “um parlamento não pode legislar sobre o passado.” A Comissão apoia a data de 23 de agosto como um feriado pan-europeu e apóia uma conscientização completamente anti-totalitária e equilibrada da história europeia, sem forçar qualquer “harmonização” ou mesmo medidas legais contra visões errôneas ou ofensivas da história.

Refutar tais visões é resposabilidade dos especialistas e do debate público. A Comissão quer que a reavaliação pan-europeia da história siga o princípio “o seu passado é o nosso também”. Em outras palavras, eles querem um pluralismo de políticas de memória que tem de ser construído por cada sociedade civil e pela comunidade de sociedade civis e suas interações com outras. Até mesmo a queda do avião que levava membros do governo polonês à Katyn, que matou boa parte da elite contemporânea da Polônia, teve consequências positivas inesperadas, já que passaram a ser discutidos de forma mais honesta e aberta, na Rússia: o massacre anterior de uma elite militar polonesa; o envolvimento da Polónia durante o Holocausto; e a expulsão da população alemã. Essas três discussões se tornaram agora parte da memória coletiva do país.

Claus Leggewie é professor de ciências políticas e diretor do Instituto de Estudos Avançados em Humanidades; Horst Meier é acadêmico da área jurídica e escritor.

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