Liberdade para a história? O caso contra as leis da memória

Josie Appleton fala com Pierre Nora e Olivier Salvatori, sobre a iniciativa “Liberté pour l’Histoire” na França.

As leis que criminalizam a “negação do genocídio” começaram a surgir na Europa nos anos 1990. No começo, elas se referiam apenas ao Holocausto, mas mais trade se espalharam para abranger também a negação dos “crimes do comunismo” e genocídios reconhecidos pelo Estado tais como o massacres dos armenos durante o Império Otomano, ou a fome na Ucrânia de 1932-1933. Uma decisão da União Europeiasugere que a “apologia pública, a negação ou a banalização grosseira de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra” devem ser punidos com entre um e três anos de prisão.

Nenhum país tem tomado as leis de memória mais a sério do que a França, para quem o negócio de legislar sobre o passado tem sido descrito como um esporte nacional. Tudo começou com a Gayssot Act 1990, que punia a negação do Holocausto com multas e prisão. Uma década depois, a legislação veio grossa e rapidamente: a lei de 2001 reconheceu o genocídio armênio, enquanto outra lei naquele ano definiu o tráfico de escravos e a escravidão como crimes contra a humanidade. A lei de 2005 reconheceu o papel positivo desempenhado pelo colonialismo francês, com uma disposição que proíbe críticas ou minimização dos crimes contra os harkis (os argelinos leais à França). Um projeto de lei de 2006 tentou punir a negação do genocídio armênio, embora não tenha sido aprovada em 2011, quando ressurgiu em forma de Ato que pune a negação ou a minimização do genocídio com 45.000 euros de multa e um ano de prisão.

No entanto, é também na França que existe a mais firme oposição dos historiadores a estas leis. O grupo “Liberté pour l’Histoire” foi formado em 2005 e, ao longo dos últimos sete anos, tem abordado as leis de memória de maneira vanguardista, algo nem sempre visto nessa profissão tradicionalmente recatada. Eu conheci o chefe da organização, o historiador Pierre Nora, e o secretário do grupo, Olivier Salvatori, na sede das editoras Gallimard, em Paris, onde eles trabalham.

Liberté pour l’Histoire há muito tempo argumenta que tais leis violam a Constituição francesa e os princípios fundadores do Estado moderno. Em sua petição de 2008, Appel de Blois, declarou: “Em um estado livre, nenhuma autoridade política tem o direito de definir a verdade histórica e restringir a liberdade do historiador com a ameaça de sanções penais”. Nora me diz que “as leis de memória são completamente diferentes das leis sobre difamação, que protegem os direitos individuais e pode ser derivada da Constituição”. Leis de memória não visam a proteger os direitos, mas sim estabelecer verdades históricas, sob a ameaça de sanções penais.

As consequências disso para a pesquisa histórica são imensas. “E se alguém escrever um livro dizendo que 10 milhões foram aprisionados pelo comércio de escravos, ao invés de 12 milhões, isso será considerado um crime?”, pergunta Nora. O estado está “sugerindo limites” para os historiadores, dizendo a eles  “o que eles devem pesquisar e o que devem encontrar”. O grupo lançou uma petição em 2005 em resposta aoprocesso do historiador Olivier Pétré-Grenouilleau pela “negação de crime contra a humanidade”, depois de ele dizer em uma entrevista que em seu ponto de vista o comércio de escravos não era “um genocídio, já que não tinha o objetivo de exterminar pessoas”.

A última vez que os estados europeus prescreveram verdades históricas sob a ameaça de sanção penal foi sob as leis de blasfêmia e heresia. Contudo, as leis de memória contemporâneas são bastante distintas dessas antigas verdades ordenadas pelo estado. A característica marcante das leis francesas de memória é a falta de qualquer lógica dominante: uma lei é pró-colonialista, duas são desculpas (ainda que para eventos separados por um século), e uma (a lei do genocídio armênio) trata de um evento que não envolveu a França e que muitos franceses sequer ouviram falar.

Não está claro por que um presidente francês de repente se agarrou com uma necessidade urgente de legislar sobre o massacre de armênios de 1915, de tal forma que ele se apressou em votar esse direito mesmo contra a oposição dos seus conselheiros. “Nós não entendemos muito bem porque eles fizeram isso. Existem muitas hipóteses”, disse Nora. Alguns sugerem que a motivação poderia ser geopolítica, adiando a entrada da Turquia na União Europeia. Um fator maior é eleitoral: os armênios são um importante bloco de eleitores em áreas-chave, como Marselha e Lyon, e não é por acaso que as iniciativas de lei armênia apareceram em anos eleitorais. A lei de 2011 foi adotada pelo deputado de Marselha, que também era vice-presidente do Grupo de Amizade França-Armênia.

A pré-condição para as leis de memória é a moralização da história – ou, mais especificamente, uma mudança de história sob o ponto de vista dos vitoriosos, pelo qual as nações exageram seus atos heroicos do passado, para a história sob o ponto de vista da vítima, onde grupos enfatizam os seus sofrimentos passados. A demanda por reconhecimento do sofrimento histórico é implicitamente uma afirmação feita através do estado. Também é, em última análise, uma exigência de indenização por ofensas sofridas, seja na forma de dinheiro ou de proteção ideológica.

Termos como “genocídio” e “crimes contra a humanidade” são agora parte do trabalho diário de reivindicação política. “Esses termos antigamente eram muito precisos”, diz Nora. “Um crime contra a humanidade era um termo legal aplicado após a Segunda Guerra Mundial, que envolveu o dever legal para perseguir e levar à justiça os autores do Holocausto até suas mortes. Genocídio significava a decisão de destruir uma parte da população, por razões racistas”. Agora eventos, incluindo guerras civis e o tráfico de escravos, também podem ser descritos nestes termos. Na visão de Nora, “é um absurdo judicial dizer que um evento como o tráfico de escravos era um crime contra a humanidade”. Os autores do crime já morreram há vários séculos e sua intenção não era destruir a população. Quanto mais a palavra “genocídio” é usada por razões ideológicas, mais ela se torna “uma palavra que os historiadores tentam evitar”.

Nora diz que os historiadores podem lidar com essas tendências culturais, desde que elas não sejam incorporadas nas leis – e, consequentemente, desde que os historiadores estejam livres para desafiar ou ignorar esse uso do passado. As leis de memória é que são o problema e precisam ser descartadas. Nesse quesito, o “Liberté pour l’Histoire” tem sido notavelmente bem sucedido. Embora Salvatori me diz que o grupo não seja propriamente uma ‘organização’ – já que não tem escritório ou funcionários – eles fizeram ouvir suas vozes em toda a mídia e nos mais altos escalões do Estado. “Nossas ideias ganharam a batalha da opinião pública”, avalia Salvatori.

Para todos os casos, o grupo conseguiu tornar as leis memória nulas e sem efeito da França. Um inquérito parlamentar de 2008 – em que “Liberté pour l’Histoire” deu os testemunhos de abertura e encerramento – emitiu a conclusão retumbante que o governo deve se abster de legislar sobre a história. Mais importante, o grupo conseguiu a suspensão da lei de 2011 sobre o genocídio armênio pelo Conselho Constitucional, que encontrou em uma decisão histórica em 28 de fevereiro de 2012 que a lei era inconstitucional em razão da violação à liberdade de expressão.

A partir de então, a ameaça de leis de memória na França parecem ter diminuído. Mas a lição dos últimos sete anos é que o impulso para legislar sobre eventos históricos reaparece de tempos em tempos, muitas vezes sem aviso prévio e em formas surpreendentes. Logo depois de ser eleito, François Hollande expressou seu desejo de voltar a legislar sobre a questão armênia. “Liberté pour l’Histoire deve permanecer vigilante”,  disse  o ex-ministro da Justiça Robert Badinter em uma assembleia geral do grupo: poderá haver mais leis de memória. “Nós não vamos nos dissolver”, diz Nora.

Essa rede informal de historiadores tem fornecido à Europa um estudo de caso impressionante sobre a campanha da liberdade de expressão. Com o slogan “liberdade para a história é a liberdade para todos”, eles defenderam não só a liberdade de sua profissão, mas também os princípios fundamentais do Estado democrático.

Josie Appleton dirige o grupo de liberdades civis Manifesto Club. Os artigos e discursos sobre o “Liberté pour l”histoire” podem ser encontrados no website do grupo. Você pode assinar o  2008 Appel de Blois ou tornar-se membro.

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Comentários (2)

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  1. It is, of course, deeply ironic that governments, in order to appear to be anti-fascist, resort to exactly the sort of anti-free-speech methods that might have been recommended by Goebbels himself.

  2. THE DIFFERENCE BETWEEN GENOCIDE AND CRIME AGAINST HUMANITY

    I admire the work of Liberté pour l’Histoire and fully support its analysis and goals. According to Josie Appleton, however, Pierre Nora and Olivier Salvatori said the following:

    Terms such as ‘genocide’ and ‘crimes against humanity’ are now part of the everyday business of political claims-making. ‘These terms were once very precise’, says Nora. ‘A crime against humanity was a legal term applied after the Second World War, which involved the legal duty to pursue and bring to justice the authors of the Holocaust until their deaths. Genocide meant the decision to destroy a part of a population for racist reasons’. Now events including civil wars and the slave trade can be described in these terms. In Nora’s view, ‘it is a judicial absurdity to say that an event such as the slave trade was a crime against humanity’. The authors of that crime are several centuries long gone, and their intention was not to destroy a population. The more that the word ‘genocide’ is used broadly for ideological reasons, the more it becomes ‘a word that historians try to avoid’.

    In contrast to the remainder of the interview, this passage is full of confusion. A few clarifications, sentence by sentence.

    ** “These terms were once very precise.”
    This is correct, but the terms are now more precise than in the past. For the first definitions of “crimes against humanity” and “war crimes,” see articles 6b and 6c of the Charter of the International Military Tribunal (IMT) at Nuremberg (1945); for the first definition of “genocide,” see article 2 of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (1948). For presently internationally accepted definitions, see International Criminal Court (ICC), Statute (1998), article 6 for genocide (which definition is identical to article 2 of the Genocide Convention), article 7 for crimes against humanity (which definition is a complete redrafting of IMT text), and article 8 for war crimes (which definition is based on 1949 Geneva Conventions and 1977 Additional Protocols). In general, the passage confuses genocide and crime against humanity: every genocide is a crime against humanity, but not every crime against humanity is a genocide.

    ** “A crime against humanity was a legal term applied after the Second World War, which involved the legal duty to pursue and bring to justice the authors of the Holocaust until their deaths.”
    This is correct: the perpetrators of the Holocaust were tried for crimes against humanity and war crimes under the IMT Charter. But the Charter definition of crime against humanity is not “the legal duty to pursue and bring to justice the authors of the Holocaust until their deaths”; it is “murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war; or persecutions on political, racial or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated.” At Nuremberg, the perpetrators of the Holocaust were not tried for genocide because the IMT Charter did not yet contain the genocide category. The United Nations General Assembly first affirmed that genocide was a crime under international law in Resolution 96 (I) (“The Crime of Genocide”) (11 December 1946). Genocide was a crime that only came into legal existence with the adoption of the Genocide Convention in 1948 and the latter’s entry into force in 1951. The Holocaust of 1939-1945 has officially been called a genocide since the adoption of the Genocide Convention. Nobody can protest in earnest against this case of retroactive labeling because the Genocide Convention was drafted precisely with the Nazi atrocities in the minds of the drafters. And many other crimes in history conform to the official genocide convention.

    ** “Genocide meant the decision to destroy a part of a population for racist reasons.”
    This is not accurate: the genocide definition speaks of an intent to destroy in whole or in part; and the groups mentioned in the genocide definition do not only include racial groups, but also ethnic, national and religious groups.

    ** “Now events including civil wars and the slave trade can be described in these terms.”
    (1) A civil war cannot be described as a genocide, a crime against humanity or a war crime. A civil war is the context in which such crimes may occur. In its 1977 Additional Protocols, the International Committee of the Red Cross was the first to distinguish the context of international war from the context of a “war not of an international character”. Such a distinction was urgently needed because by only covering gross crimes committed in international wars, a huge percentage of all gross crimes stayed in the dark. The distinction international / internal is also adopted by the ICC, but only for its definition of war crimes.
    (2) For the slave trade, see my next point.

    ** “It is a judicial absurdity to say that an event such as the slave trade was a crime against humanity”.
    This is not accurate: the slave trade is a crime against humanity but it is not a genocide. The ICC Statute determines that enslavement (a summary name for slavery and slave trade) was a subcategory of “crimes against humanity.” The Declaration of the 2001 World Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance reiterated this view. Some define slavery inaccurately as a genocide or a “Black Holocaust,” but the slave traders’ intent was not to destroy the slaves but to exploit them as cheap labor. This was the view correctly held by Olivier Pétré-Grenouilleau (and correctly rendered earlier in this interview, but not in the passage I discuss here).

    ** “The more that the word ‘genocide’ is used broadly for ideological reasons, the more it becomes ‘a word that historians try to avoid’.
    It is correct that the word “genocide” is often abused (as in the example of the Black Holocaust above). Avoidance by historians of the term for that reason, however, is a weak offer. Some crimes are genocides, others are not. The use of recent concepts is not necessarily anachronistic and often plainly better than the use of concepts en vogue at the material time of the crime. (Space lacks to develop this important point here). We already saw above that retroactive labeling can be fully justified. In fact, historians do little else than retroactively labeling of historical events. To be sure, scholars and others retain the right not to adopt labels defined under international law for historical practices. They should, however, explain why their alternative label or definition is superior. I find such explanations, if they are given at all, seldom convincing. In cases of recent historical injustice, it is not recommended to define the nature of a given crime differently from international courts with their elevated standards of evidence and huge research departments. In cases of remote historical injustice, the use of either historical or recent concepts has to be painstakingly justified.

    I elaborated these points at length in my “Historical Imprescriptibility,” Storia della Storiografia (September 2011) and “Conceptualising Historical Crimes,” Historein, no. 11 (2012).

    Antoon De Baets

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