Proibido perguntar, proibido dizer

As leis de proteção de dados agora dizem respeito à vida de todos e aqueles que vivem na União Europeia estão por ver as regulamentações atualizadas, escreve David Erdos. Essas leis propostas são altamente restritivas: chegou a hora de aqueles que trabalham com pesquisa tomarem uma posição.

Mesmo com o advento da Web 2.0, as leis de proteção de dados ainda são muitas vezes vistas como muito técnicas e pouco aplicáveis. Hermetismos técnicos à parte, esse entendimento não poderia estar mais errado. O quadro de proteção de dados existente na Europa tem um escopo de tirar o fôlego. Ele se aplica a qualquer coisa feita eletronicamente com as informações sobre uma pessoa identificada ou identificável (possivelmente até mesmo dos mortos). Segundo a UE, até mesmo detalhes inócuos que estão em domínio público são protegidos, como o título do livro de um autor. Além disso, se a informação revela de qualquer forma, por exemplo, raça/origem étnica, opiniões políticas, crenças religiosas, filiação sindical, saúde ou criminalidade, ela é classificada como informação “sensível” e sujeita a uma regulamentação ainda mais apertada. Um grande número de tribunais europeus decidiu que todas as imagens coloridas são abrangidas por esta medida já que exibem informações raciais. O quadro Europeu de proteção de dados (Diretiva 95/46/CE) não é apenas amplo, mas muitas vezes oneroso. Contendo uma exceção específica (art. 9 º) que pode ser invocada para jornalismo, literatura e artes, há uma ideia de que as pessoas serão informadas sobre o processamento de dados sobre eles (Arts. 10-11) e terão o direito de objeção (Art. 14), que será proibido o processamento de informações “sensíveis” e pessoais (Art. 8.1) e que nenhuma informação pessoal será transferida para fora do Espaço Económico Europeu sem “proteção adequada” (Art. 25,1).

Assim, a percepção popular da proteção de dados é lamentavelmente imprecisa. Isso leva a uma subestimação da ameaça radical que esse regime representa para outros direitos fundamentais e para o exercício de atividades legítimas. Em nenhum lugar isso é mais do que na pesquisa na área das ciências sociais e de humanidades. Desde o advento do quadro de proteção de dados da UE, os pesquisadores testemunharam restrições drásticas em sua liberdade para usar dados “sensíveis” ou para recorrer a metodologias secretas. Juntamente com o crescimento das algumas vezes intrusivas políticas de revisão “éticas”, aumentaram também consideravelmente as barreiras e os encargos colocados no caminho de pesquisas comuns, inócuas e socialmente benéficas.

Esperava-se que a proposta de regulamentação da proteção de dados da União Europeia pudesse reverter isso. Mas se o rascunho relatório do Parlamento Europeu – publicado em janeiro de 2013 – for aprovado, é mais provável que isso não aconteça. Preparadas por Jan Albrecht, o relator das Liberdades Cívicas, da Justiça e de Assuntos Internos, estas propostas rigorosas proscrevem todas as pesquisas nas áreas de lei e história contemporânea, bem como uma grande quantidade de trabalho em sociologia e ciência política. Agora, qualquer tratamento para fins de pesquisa histórica, estatística ou científica estaria sujeito ao seguinte:

* Uma proibição total de publicar até mesmo os dados pessoais mais inócuos em formulários identificados, a menos que o indivíduo em questão tenha dado consentimento de colocá-lo em domínio público (Alteração 339, p. 201). Isso negaria a um pesquisador histórico o direito de publicar informações de um artigo de jornal relatando com precisão as atividades públicas de um funcionário público (por exemplo, o envolvimento de Tony Blair na decisão de ir à guerra no Iraque). Também proibiria a citação e a publicação de análises de decisões judiciais já publicadas, uma vez que elas estariam cheias de detalhes que o sistema de justiça – e não as pessoas envolvidas – teriam colocado em domínio público.

* Se os detalhes em questão revelam qualquer categoria “especial” de informação, as restrições são ainda maiores. Na ausência de um consentimento dado, todas as pesquisas seriam banidas, a menos que os Estados Membros optem por permitir que suas autoridades de Proteção de Dados deem permissão para isso. Essas permissões apenas poderão ser concedidas se a informação “for anônima, ou se isso não for possível que se use pseudônimos sob os mais altos padrões técnicos e todas as medidas necessárias sejam tomadas para evitar a re-identificação dos dados das pessoas em questão”. A pesquisa também precisa ter um “elevado interesse público” e ser algo que “não possa ser realizado de outra forma” (alteração 337, p. 200). Não estaria excluída nem mesmo a informação publicada previamente pelo indivíduo em questão. Assim, por exemplo, um historiador não teria direito de informar que Emma Nicholson, agora membro do partido Liberal Democrata, era uma deputada conservadora, apesar de esse conhecimento ser público e estar disponível na Wikipedia. Segundo o Escritório do Comissariado de Informação, a filiação política de um parlamentar é um dado “sensível” e pessoal (p. 8).

* Também somos informados de que em todos os casos “de dados que permitem a atribuição de informações para uma causa identificada ou identificável” devem ser “mantidos separadamente de outras informações” (alteração 335, p. 199). Isso evitaria que um pesquisador salvasse uma sentença judicial ou uma notícia de jornal em um laptop sem ter substituído antes todos os elementos de identificação pessoal (como “David Cameron” ou “Lord Hutton”) com um código de pseudónimos.

* Por fim, foi simplesmente suprimida a cláusula que permite à Comissão Europeia propor uma legislação que permita pesquisa secreta (alteração 341, p. 202). Entretanto, tal tipo de pesquisa tem sido muitas vezes essencial para trazer à tona fatos importantes, como as práticas policiais ilegais e atitudes discriminatórias em razão do sexo, etnia ou raça. As pessoas obviamente não vão estar dispostas a dar o seu consentimento para que sua ilegalidade seja pesquisada.

Albrecht é sincero sobre as restrições à liberdade de pesquisa que estão sendo propostas. Somos informados de maneira direta que “a pesquisa não deve se sobrepor aos interesses da pessoa em não ter seus dados pessoais publicados” (p. 201). Se a palavra “jornalismo” for usada em lugar de “pesquisa”, então fica óbvio para todos, incluindo a imprensa, o quão onerosa esta censura é. Ironicamente, ao lado dessas duras restrições à pesquisa, Albrecht propõe ampliar as proteções estabelecidas no artigo 80 no que diz respeito ao jornalismo, à literatura e às artes, de modo a proteger a liberdade de expressão (Alteração, 324, p. 193). Isso é para garantir que “a liberdade de expressão seja protegida em geral, e não apenas para jornalistas, artistas e escritores” (p. 52).

A liberdade de expressão é definida por referência ao Quadro da UE, que inclui a liberdade para “receber e transmitir informações e ideias sem interferência” (Art. 11), um direito protegido de modo semelhante no artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Ao criar e difundir novos conhecimentos, a pesquisa nas áreas das ciências social e humanas intrinsecamente instancia tal liberdade de expressão. Como Brian Harrison também argumentou corretamente que “não há distinção de princípio entre o jornalista e o historiador: os historiadores simplesmente têm mais tempo para pesquisa e reflexão”. No entanto, a liberdade de expressão que não está protegida por esta proposta de revisão do artigo 80 é a dos pesquisadores (historiadores ou não). Isto porque embora o artigo 80 permita  derrogações da maior parte do regulamento, as condições do artigo 83 sobre pesquisa histórica, estatística e científica estão excluídas.

É vital que o projeto de regulamentação relativo à proteção de dados seja alterado. Precisamos garantir que a pesquisa social e de humanidades seja inequivocamente incluída no artigo 80 da proteção à liberdade de expressão. Isso também deve levar a uma reformulação mais ampla do excesso de regulamentação da pesquisa em comparação a outras atividades (muitas vezes menos valiosas). As propostas ainda estão sendo consideradas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho de Ministros. Não é tarde demais para pressionar as mudanças necessárias. Todos os que se preocupam com o futuro da investigação acadêmica precisam acordar para as realidades da Proteção de Dados. Universidades e outras organizações de investigação deverão ser francas e assertivas na oposição a estas propostas injustificadas e impraticáveis. Todo mundo reconhece que, em alguns contextos, dados pessoais sensíveis precisam de proteção. Mas quando há um visível exagero nos vemos na situação de entender cada vez menos sobre as sociedades em que vivemos – inclusive, paradoxalmente, sobre a natureza da privacidade e sobre os efeitos da própria regulamentação da Proteção de Dados.

David Erdos é o principal pesquisador do projeto Data Protection and the Open Society e pesquisador do Centro de Estudos Sócio-Legais do Balliol College, da Universidade de Oxford. Uma versão deste artigo foi originalmente publicado no Times Higher Education (“Mustn’t ask, mustn’t tell”, 14 de fevereiro de 2013).

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Liberdade de Expressão em Debate é um projeto de pesquisa do Programa Dahrendorf para o Estudo da Liberdade de Expressão, do Colégio St Antony's na Universidade de Oxford. www.freespeechdebate.ox.ac.uk

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