Arundhati Roy fala sobre segurança nacional e mídia indiana

O premiado escritor e ativista indiano fala com Manav Bhushan sobre os limites à liberdade de expressão na Índia, incluindo a censura do governo por meio da mídia e de “esquadrões”.

MB: Você acha que deveria haver restrições à liberdade de expressão sob a justificativa de segurança nacional, ordem pública ou moralidade?

AR: Não. Eu sou completamente contra qualquer restrição. Uma vez que você tem restrições, elas se prestam a interpretações e as interpretações serão sempre a favor do Estado ou dos poderes constituídos. Portanto, sou totalmente contra qualquer restrição.

MB: Exemplos na Índia e anteriormente na Europa mostram que o fascismo começa com discursos, que geram o ódio à raça e apelam aos instintos mais básicos da sociedade. Você acha que é preciso controlar o discurso de ódio por membros de uma maioria contra minorias?

AR: Eu não acho que seria justo dizer que o fascismo começa com discursos. Houve uma série de fatores que levaram ao fascismo em diferentes países. Discurso foi apenas uma forma de expressão. Mesmo que tivesse havido limites para a liberdade de expressão, eu acho que o fascismo teria acontecido de igual maneira. Eu acho que na Índia o problema não está no discurso de ódio. O problema reside no fato de que quando os estados patrocinam massacres e assassinatos, nada acontece.

O problema não está no discurso, está na ação. Se você diz que vivemos em uma sociedade com leis para assassinato, assassinato em massa e estupro e você não toma nenhuma providência com base nisso, como você quer controlar o discurso de ódio através de uma lei? Essa lei pode simplesmente ser mal utilizada. Se você olhar para a Índia, hoje, eu acho que muitas pessoas que não praticam o discurso de ódio são acusadas ​​de tal. Por exemplo, se eu digo que ter 700 mil soldados patrulhando a Caxemira é algo inaceitável, alguém diz que isso é discurso de ódio. Então eu não acho que grandes políticos ou grandes histórias surgem por meio da expressão das pessoas pela fala. Eles surgem a partir do que você permite que as pessoas façam umas às outras dentro de um país ou de uma sociedade.

MB: Você mencionou em suas declarações a questão da Caxemira e as reações de partidos como o BJP (Bharatiya Janata Party), entre outros. Você acha que a Índia está se movendo em direção a uma maior ou menor liberdade de expressão?

AR: As reações às coisas que eu digo sobre a Caxemira não vêm apenas do BJP. Eles vêm do congresso também. Ele imediatamente coagula em algum tipo de agenda nacionalista com esses partidos quem tentam um superar o outro para provar seu valor como os líderes de uma nação sem moral, sem ética. Mas quando se trata de silenciar-nos, o primeiro argumento que eles usam é moral ou ético. Na verdade eu acho que na Índia algumas coisas estão acontecendo.

Uma é a quantidade imensa de barulho. Talvez pelo fato de que temos mais canais de televisão do que qualquer outro país no mundo. Estamos cada vez mais caindo nas mãos das grandes corporações, que tem grandes conflitos de interesse porque são as mesmas corporações que estão fazendo muito dinheiro com a privatização dos recursos. E agora eles conseguem controlar totalmente a mídia, seja diretamente ou por meio de propaganda. Esta, portanto, é uma das formas de controle que está acontecendo.

A segunda forma de controle é quando o próprio Estado vai atrás de pessoas por falarem coisas que ele não deseja que elas falem. E o terceiro é que tem havido uma grande terceirização da censura. Assim, os partidos políticos terceirizam sua ira para os esquadrões, que batem nas pessoas em suas casas e criam um ambiente onde você começa a ter que pensar duas vezes. Sim, é importante pensar duas ou três vezes antes de falar sobre qualquer coisa importante, mas você começa a pensar duas vezes por causa do medo.

Portanto, esta terceirização permite ao governo continuar fingindo que é democrático e que permite a liberdade de expressão, mas na verdade o controle está sendo exercido a partir das empresas, dos capangas e também dos tribunais. Mesmo o Judiciário é mal utilizado imensamente pelos partidos políticos. Por exemplo, eu tenho inúmeros processos contra mim onde quer que eu fale, de modo que você se sente caçado por essas pessoas nessas pequenas coisas. Desta maneira eles eventualmente conseguem assustá-lo ou mantê-lo em silêncio. Não é como uma ditadura, onde todos sabem o que está acontecendo e ninguém está autorizado a dizer nada. Isso é feito de uma forma muito mais sofisticada. E agora, é claro, eles estão planejando controlar a internet.

MB: Qual você acha que é o caminho para sair desta privatização dos meios de comunicação e do controle por empresas particulares que é testemunhado não apenas na Índia, mas também em países como os EUA? E você acha que a internet oferece uma saída para isso?

AR: Bem, eu tenho certeza de que a razão pela qual o governo está considerando reprimir a internet é porque ela ainda oferece um espaço para as pessoas dizerem coisas que precisam ser contadas. Acho que a saída ideal – e não apenas em relação aos meios de comunicação, mas a respeito de tantas coisas – é que a propriedade cruzada de empresas realmente precisa parar. Você não pode permitir que as grandes corporações, que estão lentamente tendo um controle sobre tudo, desde a água à eletricidade, controlem os meios de comunicação da maneira como estão fazendo. Quero dizer, esse tipo de conflito de interesses tem de parar. Deveria haver algum tipo de legislação que garanta que a mídia não possa ser controlada dessa maneira.

MB: Você acha que o modelo BBC, ou o tipo de modelo que eles têm na Alemanha, onde você tem um órgão legal para controlar os meios de comunicação, e que é responsável de prestar contas perante uma comissão parlamentar, iria possibilitar uma neutralidade?

AR: Bem, eu acho que em comparação com o que está acontecendo seria relativamente melhor, mas eu não acho que a BBC seja totalmente neutra. Quer dizer, se você olhar para o cenário da política mundial, você tem que perguntar por que os canais de mídia estão extremamente preocupados com as mortes em alguns lugares, enquanto que os três anos de revolta contínua na Caxemira mal entraram na cobertura. Que tipo de política está por trás dessas escolhas? Mas, certamente, é um ponto de partida. Eu não acho que seja tão difícil chegar a um modelo que torne a mídia mais independente. Obviamente, ele nunca vai ser perfeito. Mas agora estão se movendo na direção de uma quase lavagem cerebral que está acontecendo na Índia em muitos dos canais de TV. Você encontra uma situação onde eles têm tanto poder e estão fazendo tanto mal dele que isso se torna muito perigoso.

Em alguns de meus ensaios eu falo o que o superintendente da polícia de Chhattisgarh me disse: “Olha, não há nenhuma razão em enviar a polícia e o exército para limpar a terra…” Ele não disse “para as empresas de mineração”, mas entendeu-se que isso é o que ele quis dizer. Ele disse: “Tudo que você tem a fazer é colocar uma TV na casa de cada pessoa da tribo. O problema com essas pessoas é que eles não entendem ganância”. Portanto, não é um jogo superficial. É um negócio muito profundo. O negócio é sobre o que está acontecendo na televisão e o que está sendo vendido por aí. Não é apenas batata frita e aparelhos de ar condicionado, é toda uma filosofia. É todo um modo de pensar que é totalmente destrutivo, que já destruiu tantas pessoas, e a ideia é destruir mais e mais.

MB: Você escreveu muito sobre os problemas o leste indiano (Chhattisgarh), onde as empresas de mineração estão tentando tomar as terras das tribos. Você também disse que os protestos como os de Anna Hazare requerem audiência, coisa que não existe nas tribos em Chhattisgarh. Em qual cenário você acha que a violência se torna uma forma necessária, se não legítima, de expressar a angústia e a necessidade de justiça?

AR: Eu acho que eu poderia discutir com você sobre o uso da palavra “violência”, bem como a ligação da palavra “violência” a uma forma de expressão. Porque se a violência é uma forma de expressão, então isso sugeriria algo cult – que obviamente e não é. Acho que o que está acontecendo lá é realmente uma forma desesperada de defesa. De auto-defesa da terra natal. Não é que eles arbitrariamente decidissem tornarem-se violentos. E a violência é uma palavra que a classe média e, particularmente, as pessoas desses estúdios de TV gostam de usar porque tem uma conotação muito diferente da ideia de resistência ou de uma luta armada de um contingente de pessoas. A violência também tem ligações com o terrorismo, e eu acho que você não pode acusar essas pessoas em Chhattisgarh, que estão lutando e que estão sendo chamadas de terroristas, de violentas apenas porque elas se recusaram a sair da selva e se juntaram a estes campos policiais. Então, isso não significa que as pessoas que estão na selva sejam terroristas.

A situação toda é que no tempo colonial os povos tribais foram sitiados pelas potências coloniais. Mas quando veio a independência, a Constituição indiana realmente perpetuou a lei colonial e disse que as terras tribais pertenciam ao departamento florestal. Por isso, criminalizaram esses povos indígenas e seu modo de vida. E hoje eles foram promovidos do estatuto de criminosos comuns ao de terroristas. Então, se você não sair da floresta, se você plantar suas sementes, se você vive na sua aldeia, você é um terrorista maoísta e está sujeito a levar um tiro. Então você tem uma situação em que mil agentes de segurança cercam uma aldeia, incendeiam, estupram as mulheres ou  assassinam o povo que vive ali. E se há uma reação a isso dizem que é terrorismo, é violência.

Quer dizer, você tem 200 mil forças de segurança na floresta e tem o governo da Índia, que se chama agora uma superpotência, que está planejando implantar o exército e a força aérea contra as pessoas mais pobres do mundo. Então aí está. Isso não se trata mais de liberdade de expressão, trata-se de guerra. Assim, são necessárias formas de protesto à la Gandhi nas cidades. Quer dizer, eu não tenho nada contra isso. Só porque é um protesto de Gandhi não significa que eles estão protestando pela causa certa ou pedindo as coisas certas. Mas é um teatro muito eficaz, como o próprio Gandhi mostrou. Mas eu acho que ele precisa de uma audiência e ele precisa de uma classe média, a classe média que se importe. Caso contrário, se as pessoas morrem de fome nas minas de Bhatti ou algum outro lugar obscuro, quem se importa? Você precisa da mídia. Você precisa da classe média. E você precisa de uma plateia.

MB: Muitas pessoas diriam que o problema que assola a mídia indiana é semelhante ao problema que assola a democracia indiana em geral: que ela tenha traços de populismo, que corre atrás de coisas que capturam a imaginação da classe média e das pessoas em geral. É por isso que não há nenhuma simpatia por pessoas marginalizadas ou causas marginalizadas. E isso explica a diferença no tipo de atenção que Anna Hazare e Irom Sharmila recebem. O que você acha da comparação entre eles dois, que estavam usando o mesmo método de se expressar?

AR: Eu acho que alguns tópicos precisam ser separados. Um deles é que a palavra “populismo” é interessante. Porque o populismo e a classe média são duas coisas separadas. Você tem uma situação em que os rituais da democracia e a retórica da democracia exigem que você fale sobre as castas mais pobres e inferiores, e assim por diante. Mas o que ela entrega é somente direcionado à classe média. E os meios de comunicação, especialmente os grandes meios, são apenas voltados para a classe média já que 90% das suas receitas vêm de produtos de consumo de publicidade. A classe média é o mercado, é o consumidor de todos estes bens de consumo internacionais. É por isso que todas as empresas financeiras internacionais e as empresas têm os seus olhos sobre eles. Essa classe média existe à custa de uma subclasse muito maior. Eu li outro dia que temos mais pessoas pobres na Índia do que os 26 países mais pobres da África juntos. Essa classe média é o mercado e, assim, o populismo só se aplica a ela, não a toda a população.

Mas o problema com Anna Hazare e Irom Sharmila é diferente. Irom Sharmila é também uma pessoa de classe média, e há muitas pessoas de classe média em Manipur que a apoiam. Mas essa é a questão do nacionalismo. Sua audiência é muito menor e uma parte da população de classe média (da Índia como um todo) é muito hostil a ela. Ou, no máximo, ele pode dizer: “Oh coitadinha”, mas não podemos fazer nada a respeito do Armed Forces Special Powers Act (AFSPA), que é uma lei que permite que até mesmo os oficiais não-comissionados no Exército atirem em casos suspeitos, e essa lei foi usada em Manipur para estuprar e matar mulheres. Essa é a razão pela qual Irom Sharmila está fazendo greve de fome, para revogar o AFSPA. Mas longe de ser revogada, essa lei foi estendida para Nagaland, Assam, Caxemira e hoje o motivo pelo qual o exército não foi implantado em Chhattisgarh é porque ele quer ter a proteção e a impunidade do AFSPA também naquela região. Já o movimento de Anna Hazare apelou para a classe média indiana, enquanto Manipur é uma espécie de luta separatista, anti-nacional, contra o exército.

MB: Com relação a Manipur e à Caxemira, que vão contra o conceito de nacionalismo, parece haver uma grande divergência no que as pessoas consideram como fatos. Por exemplo, não existe um consenso sobre quantas pessoas são torturadas na Caxemira, ou quantas mulheres foram estupradas. E parece haver esse abismo entre as pessoas que estão lá e as pessoas que falam fora desse conceito de nacionalismo. Você acha que esse abismo é o resultado das restrições impostas pelo estado indiano à liberdade de expressão ou há alguma outra explicação para isso?

AR: Bem, obviamente, essa é uma grande explicação para isso. Mas o problema com a Caxemira é que não podemos dizer que é o “estado indiano”, porque a elite indiana se fundiu no estado indiano em alguns aspectos. Essa é a diferença entre uma democracia como a nossa, e uma ditadura – as classes mais altas se fundiram no estado, por isso se tornaram tão nacionalistas quanto o próprio estado. Então eu não acho que seja preciso bater na porta dos editores dos grandes jornais, porque eles estão felizes em cumprir com esse tipo de censura. E quem vai para a Caxemira só tem que sair do aeroporto para perceber que está em uma zona de ocupação. E não demora muito para descobrir o quão densa é a ocupação e como é supervisionada de perto pela mídia. E, certamente, não são apenas os jornalistas indianos que estão relatando o que acontece na Caxemira, mas até mesmo os jornalistas locais são ameaçados, ou cooptados. Muitos deles não são contratados a não ser com a aprovação das autoridades. E para ter uma ocupação militar de 24 horas por 20 anos, é como o controle tivesse se infiltrado por baixo da terra. Ele sai da torneira quando você a abre. É tão sofisticada a forma em que eles controlam as pessoas.

O interessante é que, embora haja todo esse controle sobre a mídia, se você é um jornalista estrangeiro ou um acadêmico estrangeiro, você precisa de credenciais de segurança para vir para a Índia. Se você é um empresário, não. Se você quiser comprar uma mina ou vender uma mina, tudo bem, mas se você é um acadêmico ou um jornalista, você precisa de um certificado de segurança. E, ao mesmo tempo, existe essa onda de festivais literários na Índia. Dez anos atrás, houve uma onda de concursos de beleza e hoje há uma onda de festivais literários. Onde quer que você vá, há um festival literário que está sendo patrocinado por empresas mineradoras, por empresas de infraestrutura, grandes corporações e pelo governo. E você vê escritores indo e vindo o tempo todo.

Eu não sei que tipo de visto que recebem. Eu não acho que eles precisam de certificado de segurança. E não estranharia se fizessem um festival literário na Caxemira, como o governo do Sri Lanka que está patrocinando um festival literário depois de uma guerra em que 40.000 pessoas foram massacradas. Portanto, há esse tipo de falsa celebração da liberdade de expressão. Então eu acho que chegamos a um período em que estamos muito além da “fabricação do consentimento”. Temos, agora, a fabricação da dissidência, você tem a produção de notícia em si, e você tem uma espécie de ritualização da liberdade de expressão a ponto de que nada pode ser ouvido. Ou então você reprime. Por isso, é um jogo bastante sofisticado que acontece.

MB: Então, de modo geral, você acha que nós temos um tipo sofisticado de campanha de relações públicas que faz que o país pareça ser uma democracia e que permite a liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo acompanha muito de perto o tipo de conteúdo que é permitido sair e a maneira como a imagem da Índia é projetada?

AR: Na América, por exemplo, você tem essa legislação sofisticada sobre liberdade de expressão, onde eles leiloam as plataformas a quem pague mais. Por isso, é muito caro para as pessoas comuns terem a liberdade de expressão. Não é realmente livre. Aqui também aconteceu isso, mas o que nós temos, no lado positivo, na Índia, é em primeiro lugar essa grande população que está fora do jornal, mas eles estão sendo mostrados na TV. Mas há esse tipo de anarquia, em que as pessoas não podem controlar toda a população. Você tem um monte de panfletos e pequenos jornais e revistas e coisas dissidentes que estão acontecendo, que eu acho que são maravilhosos. E você tem um monte de atividade na internet, Facebook e outras mídias sociais, o que o governo está tentando reprimir.

Ao mesmo tempo que é preciso muita energia para tentar decodificar o que está acontecendo, é preciso também um monte de energia por parte deles para continuar fingindo ser essa grande democracia. Também é preciso muito esforço para lidar com isso de uma forma que seja diferente, por exemplo, da China, que apenas reprime. E o silêncio dos meios de comunicação na China ou em outros países abertamente ditatoriais é diferente do que está acontecendo aqui. Aqui, eu acho que é uma batalha de inteligência e é bramânica em sua astúcia. Os lucros a serem feitos para parecer ser uma democracia também tem que ser colocados em balanços patrimoniais. A Índia faz ganhar um monte de pontos ao parecer ser uma democracia, e é por isso que ninguém fala tanto sobre a Caxemira quanto se fala sobre o Tibete ou sobre o levante no Oriente Médio. Então, quando grande mídia começa a relatar com muito entusiasmo sobre uma revolta, e mantém-se muito quieta sobre outras, você tem que tentar entender essas coisas – por que isso está acontecendo? Qual é a história aqui?

Essa é a transcrição levemente editada de uma entrevista conduzida por Manav Bushan para o Free Speech Debate em Janeiro de 2012.

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